Sem regulação, vapers não têm garantias do que estão tragando

Publicado:

Tempo de leitura: 4 minutos
Ausência de legalização faz proliferar vaporizadores falsificados, sem nenhuma garantia de qualidade, procedência e respeito ao consumidor. Falta de controle sobre o que os usuários consomem pode agravar problema de saúde pública

No Brasil, são aproximadamente 835 mil o número de pessoas que consomem vapes e cigarros eletrônicos, dentre 2,4 milhões de indivíduos que já tiveram algum contato com esses dispositivos. Considerando os adultos que vivem nas capitais brasileiras, 2,3% utilizam esses produtos atualmente, ao passo que 6,7% já o experimentaram ao menos uma vez na vida1.

Esses números do Ministério da Saúde chamam a atenção por diversos motivos – e não apenas de especialistas em combate ao tabagismo. Considerando que a venda e a importação dos dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) são oficialmente proibidos no Brasil desde 2009, a partir de uma resolução da Anvisa, podemos constatar que existe, no mínimo, um descompasso entre a enorme demanda por vaporizadores no país e a postura excessivamente rígida do Estado brasileiro ao vetar qualquer forma de acesso legal a esses produtos.

O resultado prático disso não poderia ser mais preocupante: o crescimento sem controle do mercado paralelo – que, mesmo sendo ilegal, continua sendo a única forma de absorver a procura desenfreada de quase 1 milhão de usuários por cigarros eletrônicos no Brasil. A fiscalização defendida pela Anvisa em julho desse ano, quando a proibição foi mantida após consulta pública2, até pretende inibir parcialmente (e sem sucesso, dado o estágio avançado da marginalização) a venda de DEFs, mas jamais irá cessar a inegável demanda por esses produtos.

Enquanto a legalização dos cigarros eletrônicos continua sendo um tabu no Brasil, em que pese essa grande procura, presenciamos a proliferação de vaporizadores falsificados, sem nenhuma garantia de qualidade, procedência e respeito ao consumidor. Um movimento perigoso que só ganha força com o vácuo regulatório e a ausência de obrigações a serem respeitadas – isto é, que não sejam tão simplesmente a não comercialização.

Com isso, o efeito é contrário ao pretendido. Sim, pois existe ao menos um fator que pode tornar ainda mais difíceis os desafios ligados ao tabagismo, além de agravar os problemas de saúde pública que decorrem desse cenário. Aqui me refiro à falta de controle sobre as substâncias e componentes dos dispositivos que hoje, ainda que ilegalmente, chegam às mãos (e aos pulmões) das pessoas.

A falta de regulação inibe, por exemplo, a imposição de controles rígidos sobre a concentração de nicotina presente nos líquidos usados no cigarro eletrônico. Regras adequadas poderiam ser criadas inclusive com o apoio de especialistas em saúde pública e controle sanitário com o objetivo de impor limites sobre a quantidade de elementos tóxicos presentes no aerosol do vape.

Outros eventuais ajustes nas características do produto não acabariam por aí. Como estabelecimento de regras hoje inexistentes no Brasil, enquanto a oferta de certos tipos de aromatizantes poderia ser reduzida ou até eliminada, recursos de proteção e segurança poderiam se tornar obrigatórios.

Os variados sabores presentes no líquido (ou juice) do vape, que possuem inúmeros aromas à venda e ganham novas versões todos os dias, são uma fonte de críticas conhecidas e recorrentes. Se é verdade que determinados aromas podem ser apelativos para os mais jovens (grupo que não representa o público-alvo desses dispositivos, vale dizer), seria possível, mediante regulação apropriada, impor limites aos sabores ofertados a fim de prevenir que os cigarros eletrônicos sejam usados indevidamente como iniciação ao tabagismo.

Outro argumento contrário e frequente envolve o alegado risco de explosão e de queimaduras provocadas pelos DEFs. Aqui novamente a regulação poderia garantir a segurança e a integridade física dos usuários ao exigir a adoção obrigatória de recursos de proteção e ajustes de temperatura e potência, como já acontece nos chamados mods reguláveis.

É importante levar em conta que existem diferentes estilos, tamanhos e formatos de vaporizadores, com centenas de opções personalizáveis e modelos dos mais variados tipos. Toda essa gama de possibilidades abre espaço para flexibilizar ou endurecer a venda de determinados cigarros eletrônicos de acordo com o risco que cada um deles oferece.

Há, por exemplo, líquidos com sais de nicotina, chamados de Nicsalt, com concentrações altas da substância de até 60mg/ml, que oferecem maior risco de dependência a não fumantes e especialmente jovens. Uma regulação poderia limitar a venda desse tipo de líquido, com o objetivo de permitir que os produtos sejam destinados exclusivamente a substituir o cigarro tradicional.

O ponto central é que, independentemente dos supostos riscos envolvidos e dos elementos que poderiam ou não ser eliminados, uma legalização adequada poderia estabelecer limites sobre a venda de vapes no Brasil sem proibi-los absolutamente. Hoje, contudo, a falta de uma regulação impede que restrições como essas sejam adotadas, o que consequentemente também bloqueia uma constante conformidade da indústria do vape com a saúde pública e o combate ao tabagismo, em nome da segurança e do bem-estar dos consumidores.

Com os cigarros eletrônicos disponíveis exclusivamente no mercado paralelo, diante de uma inevitável demanda de fumantes adultos, torna-se impossível fazer valer normas que exijam garantias sobre a procedência e a qualidade dos vapes. Em outras palavras, o que temos hoje é um ambiente de absoluta insegurança no qual os usuários não têm certeza sobre qual produto estão consumindo e o que contém cada tragada.

Fontes:

1.     Dados do Ministério da Saúde publicados pela revista Pesquisa, da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo)

2.     “Anvisa aprova relatório de AIR sobre Dispositivos Eletrônicos para Fumar, que inclui todos os tipos de cigarros eletrônicos”, matéria publicado no site do Ministério da Saúde em 06/07/2022

Vanessa Viana
Vanessa Viana
Vanessa Viana é advogada especializada em Direito Administrativo e Regulatório.

Outros artigos

Lojas de varejo de cigarros eletrônicos no México: um país que proíbe a venda

David Zepeta Hernández, Angelica Susana López Arellano, Erika Mayte Del Angel Salazar, Nazaria Martínez Díaz
"Os cigarros eletrônicos estão amplamente disponíveis e comercializados em diversos pontos de venda no México. O alto número de lojas, marcas de líquidos e cigarros eletrônicos indica o descumprimento das regulamentações existentes."

Transformação do mercado de produtos de tabaco no Japão, 2011–2023

Michael Cummings, Avery Roberson, David T Levy, Rafael Meza, Kenneth E Warner, Geoffrey T Fong, Steve Shaowei Xu, Shannon Gravely, Bibha Dhungel, Ron Borland, Richard J O'Connor, Maciej Lukasz Goniewicz e David T Sweanor
"Embora muitos fatores possam ser responsáveis ​​pela queda nas vendas de cigarros no Japão nos últimos 12 anos, o aumento nas vendas de HTPs parece ser um fator."

Prognóstico após a mudança para cigarros eletrônicos após intervenção coronária percutânea: um estudo nacional coreano

Danbee Kang, Ki Hong Choi, Hyunsoo Kim, Hyejeong Park, Jihye Heo, Taek Kyu Park, Joo Myung Lee, Juhee Cho, Jeong Hoon Yang, Joo-Yong Hahn, Seung-Hyuk Choi, Hyeon-Cheol Gwon, Young Bin Song
"Entre fumantes submetidos a intervenção coronária percutânea para doença arterial coronária, a mudança para o uso de cigarro eletrônico (particularmente a transição completa) ou parar de fumar foi associada à redução do risco de eventos cardíacos adversos maiores do que o uso contínuo de cigarro combustível."

Na última década o vaping salvou 113 mil vidas e economizou quase 1 trilhão de reais na economia e na saúde dos EUA

Relatório traduzido para o Português pela organização científica Direta.org mostra que o vaping tem um grande impacto positivo quando devidamente regulado.

Reino Unido proibirá vapes descartáveis, restringirá sabores e fará mais coisas estúpidas

O governo do Reino Unido decidiu que proibirá os vaporizadores descartáveis ​​e sugere que proibirá os sabores dos vaporizadores. Isto irá desencadear mais tabagismo, mais comércio ilícito e mais soluções alternativas.

9 fatos e mitos sobre o vaping de acordo com o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido

Menos prejudiciais do que fumar, ajudam contra o tabagismo, menos nicotina que os cigarros e outros fatos que o Brasil ignora sobre o vaping.

Newsletter

- Receba notícias em seu email

- Não compartilhamos emails com terceiros

- Cancele quando quiser

Últimas notícias

FDA divulga dados de 2023 dos EUA com queda no tabagismo e no uso de vape adolescente após regulamentação

Tabagismo adolescente é o menor de todos os tempos e o consumo de cigarros eletrônicos continua caindo.

Colégio Real de Psiquiatras da Austrália e Nova Zelândia declara que vapes são alternativa mais segura do que o consumo de tabaco

Instituição declara que o vaping pode ser prescrito para pessoas adultas que fumam como forma de tratamento contra o tabagismo.

4 milhões de brasileiros já usaram cigarro eletrônico no Brasil e a maioria vê propaganda na TV

O relatório Covitel 2023 coletou informações de 9 mil pessoas, com 18 anos ou mais, entre janeiro e abril...

Manifestação a favor da regulamentação dos cigarros eletrônicos ocorre nesta sexta-feira em Brasília

Consumidores foram convocados a se concentrarem na frente do prédio da ANVISA a partir das 9h de sexta-feira (1º)

A desinformação sobre os cigarros eletrônicos faz vítimas reais

O estigma contra os produtos e consumidores vem causando danos graves na vida das pessoas.