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O debate no Brasil
Temos acompanhado o debate sobre a possível regulamentação dos cigarros eletrônicos e vapes no Brasil, tema que permaneceu sem avanços e tampouco resultou em medidas concretas de controle após a recente decisão da Anvisa que aprovou o Relatório Final de Análise de Impacto Regulatório, recomendando a manutenção da proibição e importação desses itens.
Enquanto diferentes segmentos da sociedade celebram ou criticam essa medida, é certo que não podemos fechar os olhos para o que acontece na prática. A realidade está nas ruas e no cotidiano de milhares de fumantes adultos país afora. Aqueles que não conseguem ou não desejam largar o hábito de fumar continuam sem ter alternativas legais aos cigarros tradicionais de nicotina.
Essa situação impõe enormes desafios de saúde pública, já que não muda o fato de que os dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) estão ampla e facilmente disponíveis no mercado paralelo. No entanto, sem nenhum controle em sua distribuição, sem exigências básicas de qualidade e segurança e com um grande volume de oferta e demanda que torna praticamente inviável qualquer tentativa de fiscalização. Em paralelo e paradoxalmente, os cigarros convencionais são vendidos normalmente.
Mesmo diante dos comprovados danos à saúde, as autoridades no Brasil e ao redor do mundo mantiveram os cigarros tradicionais de nicotina em circulação. Uma decisão correta por motivos variados, entre eles: a existência de cerca de 22 milhões de fumantes adultos no Brasil [1], boa parte deles com dificuldades para combater o vício e lidar com a abstinência; e o risco de que o mercado pirata, sob nenhuma normatização ou controle, prevalecesse como fonte de consumo desses itens — agravando os desafios de saúde associados ao tabagismo.
Eis o paradoxo: o Estado autoriza o dano à saúde da população ao permitir o fornecimento de cigarros tradicionais e proíbe a alternativa de redução de danos através do acesso aos DEFs.
Negar acesso aos DEFs às pessoas que sofrem com o vício da nicotina, sob pretexto de falta de evidências científicas, é o mesmo que relegar esta parcela da população aos danos dos cigarros tradicionais (estes, sim, com prejuízos à saúde cientificamente comprovados) ou ao mercado paralelo de DEFs.
E quem se beneficia com isso? Apenas o contrabando e a indústria tradicional do tabaco.
Diante desse cenário, nasce a pergunta inevitável: por que não impor aos cigarros eletrônicos e vapes a mesma regulamentação que hoje coloca rígidos limites à venda de cigarros tradicionais de nicotina?
Proibir vs. regulamentar
Aqui cabe uma análise sobre qual é a medida mais efetiva: implementar uma proibição generalizada à venda de produtos, como acontece hoje com os dispositivos eletrônicos para fumar; ou liberar o seu comércio de forma regrada, seguindo a experiência de países como Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Japão. Afinal, os cigarros convencionais letais há muito tempo são regulamentados.
É claro que a regulamentação não impede o contrabando e a pirataria. Dados do Ibope Inteligência/Ipec indicam que, em 2020, 49% de todos os cigarros tradicionais consumidos no Brasil eram ilegais [2].
Contudo, esse número também mostra que uma leve maioria dos fumantes prioriza os produtos originais. E isso acontece por dois motivos: 1) eles têm essa opção legalmente disponível, não restando razões plausíveis para recorrer ao mercado paralelo; e 2) isto lhes assegura que o produto que irão consumir atende a exigências legais, como a presença do filtro e a garantia da procedência.
Esse cenário ajuda os consumidores a saberem o que estão comprando e a evitarem maiores riscos, inclusive associados à inalação de componentes tóxicos não usuais. Sem uma rígida regulamentação, esse controle jamais poderia ser exercido — e provavelmente até mesmo os estabelecimentos mais confiáveis, em tese, passariam a comercializar cigarros de baixa qualidade e com um risco muito maior de agravar os danos à saúde.
A mesma filosofia pode e deve ser aplicada aos vapes. Regulamentar significaria exercer maior controle sobre os produtos que chegam às mãos (e aos pulmões) dos consumidores, o que daria às autoridades a chance de impor restrições aos seus componentes. Isso vai desde a quantidade de vapor emitida por esses aparelhos até a presença ou não de aromatizantes que poderiam torná-los atrativos àqueles que não fazem parte do seu público-alvo.
Bem-estar e livre escolha
Cabe notar ainda como essa linha de pensamento leva em consideração o bem-estar e a livre escolha de milhares de fumantes adultos. Mesmo diante de um forte controle sobre as vendas, as opções atualmente disponíveis de cigarros tradicionais de nicotina não deixam de provocar danos conhecidos e certos à saúde — os quais são, em sua maioria, assumidos de forma consciente pelos consumidores.
Então por que impedir a venda do que seria, no máximo, um equivalente eletrônico? Isso porque ele é menos nocivo se devidamente regulamentado, pois não produz alcatrão ou monóxido de carbono — substâncias que causam doenças pulmonares e câncer [3]. Qual a razão para proibir um dispositivo que pode ajudar a reduzir os danos causados pelo tabagismo e até extinguir o vício?
Se há forte regulamentação para um produto comprovadamente mais prejudicial à saúde humana (cigarros tradicionais), não faz sentido que não haja para outro (DEFs), ainda que invocada a falsa premissa de falta de comprovação científica sobre seu potencial de redução de danos. E se houve avanços importantes no combate ao tabagismo nas últimas décadas, isto é fruto de uma política contundente de controle associada a campanhas educativas — e de não de uma proibição absoluta.
Na ausência da legalização dos dispositivos eletrônicos, ou os consumidores continuarão submetidos a todas as substâncias tóxicas presentes no cigarro convencional, perpetuando o desafio que vivemos hoje para combater o tabagismo; ou parte significativa desse grupo correrá riscos ainda maiores com o consumo de cigarros eletrônicos vendidos ilegalmente, sem nenhuma garantia sobre sua qualidade e procedência.
A Constituição garante que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Neste caso, proibir a comercialização de vapes é o mesmo que a autorizar indiscriminadamente. O cenário prático dos 13 anos desde a proibição da Anvisa com a edição da RDC nº 46/2009 é a prova disto. Nesse período, a demanda por esse produto teve um crescimento exponencial, bem como a sua oferta pelo mercado ilegal.
À Anvisa, como agência reguladora, cabe cumprir seu papel de regulamentar com critérios de segurança e qualidade. Ao proibir, omite-se no cumprimento de sua função e endossa os resultados obtidos nos últimos 13 anos de proibição.
Ademais, a Anvisa não possui como competência institucional a regulamentação de questões de segurança pública, de modo que as consequências desta proibição, sobretudo relacionadas ao contrabando, não podem ser administradas por ela.
Já existem políticas públicas de combate ao contrabando gerenciadas e implementadas pelos órgãos estatais competentes. É o caso de se perguntar: tais políticas impediram a enxurrada de DEFs contrabandeados no mercado nacional? A resposta é não.
Fato é que continuamos diante de um grave problema de saúde pública provocado há muitos anos pelo tabagismo — e que jamais será resolvido com uma proibição incapaz de exercer domínio ou influência nem sobre as escolhas das pessoas, nem sobre a distribuição descontrolada de vapes e cigarros eletrônicos no mercado paralelo. Definitivamente, não faz sentido evitar alternativas legais aos cigarros tradicionais de nicotina quando milhares de brasileiros estão com sua saúde comprometida pelo uso de um produto não apenas fornecido legalmente, mas também por muitos anos incentivado pela propaganda da indústria do cigarro tradicional, avalizada pelo Estado.
Em resumo, é incoerente proibir a comercialização dos DEFs no País porque resulta em mais um problema de saúde pública (falta de qualidade e segurança dos produtos consumidos), de segurança pública (contrabando e seus efeitos nefastos); e fiscal (não arrecadação de impostos), além de impedir o acesso universal à saúde das milhares de pessoas fumantes.
Fontes
[1] Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) publicados em matéria datada de maio de 2022.
[2] Dados do Ibope Inteligência/Ipec publicados em matéria datada de junho de 2021.
[3] “Cigarros eletrônicos: o que são e quais são os riscos à saúde?”, matéria publicada em dezembro de 2021 pelo site oficial do Summit Saúde Brasil.