No dia 07/01/2023 o Governo de São Paulo publicou em duas de suas páginas oficiais no Instagram informações falsas sobre os cigarros eletrônicos.
A publicação contou com o mesmo texto e 4 fotos no estilo “sequência”, realizada nas suas páginas @Saude_SP que conta com 155 mil seguidores e na página @Governosp com mais de 546 mil seguidores.
“➡️Os dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) são produtos de diversos formatos (cigarros, canetas, vaporizadores, pen drives, pods), com sabores e aromas atrativos, principalmente para os jovens.
⚠️Esses objetos têm diversas substâncias tóxicas que prejudicam a saúde de quem fuma e de quem está por perto, que se torna fumante passivo ao inalar a fumaça.
📍Desde 2009, a comercialização, importação e propaganda dos DEFs são proibidas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Além disso, também se enquadram na Lei Antifumo do Estado de SP, que proíbe fumar em espaços fechados privados ou de uso coletivo.”
Conteúdo
Cigarro eletrônico não é para parar de fumar
A informação contraria diversos estudos, inclusive a revisão Cochrane, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde por suas revisões científicas qualidade “ouro”, que por dois anos consecutivos concluiu, através da análise de dezenas de estudos, que os cigarros eletrônicos são consideravelmente mais eficazes para ajudar as pessoas a parar de fumar do que adesivos e gomas de mascar, produtos aceitos pelo Governo de São Paulo para o combate ao tabagismo e que uma vez utilizados para substituir os cigarros, considera-se que houve o interrompimento do fumo.
Tem maior quantidade de nicotina / Um pod de 59mg corresponde a TRÊS maços de cigarro comum
As duas informações falsas tratam do mesmo tema, a quantidade de nicotina dos cigarros eletrônicos.
É surpreendente a frequência com que profissionais da saúde, organizações e ditos “especialistas” apresentam esse tipo de informação que mostra desconhecimento básico sobre o assunto, seja por negligência ou má fé, que acaba por contribuir para prejudicar a percepção sobre os reais riscos dos cigarros eletrônicos.
O que contribui para a confusão do público leigo e o porque essas informações falsas conseguem se passar por verdade é o fato da quantidade de nicotina divulgada nos produtos não ser aquela absorvida pelo organismo, portanto é preciso fazer uma análise mais criteriosa para entender como tudo funciona. Mas é inadmissível que profissionais da área de saúde, principalmente entidades Governamentais, contribuam para perpetuar essa desinformação.
Temos um artigo que explica em detalhes sobre o tema, mas trazemos aqui os principais pontos.
Em resumo, os cigarros eletrônicos entregam no mínimo 20% a 25% A MENOS de nicotina do que os cigarros tradicionais.
Quanta nicotina tem em um cigarro?
Ao contrário do que se pensa, cada cigarro não possui no máximo 1mg de nicotina. Essa confusão ocorre porque há um limite definido pela RDC 14/2012 da ANVISA para as quantidades máximas de alcatrão, monóxido de carbono e nicotina, porém isso é na fumaça dos cigarros, valor que é informado no pacote dos produtos.
Mas a fumaça dos cigarros é a segunda etapa do processo de consumo, após um cigarro ser aceso e inalado pelo consumidor. Na verdade um cigarro brasileiro tem cerca de 15mg de nicotina BRUTA por bastão, o que resulta em 300mg em um maço. Após aceso, a nicotina transportada na fumaça está diluída 15x.
Quanta nicotina tem em um líquido para cigarro eletrônico?
Os produtos para cigarros eletrônicos podem ter concentrações BRUTAS que vão de 3mg até 60mg de nicotina para cada ml de líquido. Isso significa que um cartucho, com média de 2ml totais, pode ter de 6mg até 120mg de nicotina bruta. Já um frasco de 30ml (volume padrão do mercado) pode ter um total de 90mg até 1800mg de nicotina bruta.
Comparativo sem lógica
Estão comparando bananas com maçãs. Não se pode comparar a nicotina bruta dos líquidos para cigarros eletrônicos com a concentração de nicotina dos cigarros convencionais presente na fumaça, já diluída pelo menos 15x.
Em uma situação real de consumo, observada em estudos populacionais, é plausível esperar que um fumante, que fez uma troca total dos cigarros convencionais para os eletrônicos, passe a vaporizar em média 2 cartuchos de 2ml diários, totalizando 4ml de líquido. Se considerarmos a concentração máxima oferecida pelo mercado, de 60mg/ml, a declaração correta seria dizer que “enquanto uma pessoa que fuma um maço de cigarros por dia estará consumindo 300mg de nicotina bruta diariamente, um usuário de vaporizadores que vaporiza 4ml diários, estará consumindo 240mg de nicotina bruta.”
Neste cenário, em termos percentuais, a nicotina bruta consumida nos cigarros eletrônicos é 20% menor.
Cigarros eletrônicos NÃO entregam mais nicotina no organismo
A falsa percepção de que cigarros eletrônicos possuem mais nicotina do que os cigarros convencionais só ocorre ao fazer uma conta de matemática básica, ignorando completamente a farmacocinética, área fundamental da ciência da saúde que leva em consideração a administração, absorção, distribuição, metabolismo e excreção das substâncias no organismo.
Isso porque os valores de nicotina bruta, na fumaça dos cigarros ou no aerosol do cigarros eletrônicos são relevantes apenas para controlar a quantidade real de nicotina absorvida pelo organismo, que é muito menor dos que os valores tratados até então. É muito fácil medir tais valores através da coleta de sangue antes, durante e após o consumo. Esse é o valor que devemos considerar, pois é o que efetivamente entrará em nosso corpo.
Para colocar em perspectiva, um cigarro (linha roxa no gráfico) com 15mg de nicotina bruta (300mg totais em um maço), que oferece no máximo 1mg de nicotina diluída na fumaça, entregará efetivamente na corrente sanguínea mais de 20ng/ml (nanogramas por ml) ou 0,000020 miligramas após a primeira tragada, permanecendo em níveis elevados por mais de 30 minutos. Os cigarros são o mecanismo de entrega de nicotina mais eficaz já desenvolvido, levando apenas 10 a 20 segundos para chegar ao cérebro.
Já uma tragada de um vaporizador (linha laranja no gráfico) com um líquido com 60mg/ml de nicotina bruta (portanto 1800mg brutos em um frasco de 30ml) entregará ao organismo pouco mais de 15ng/ml aos 5 minutos após o consumo. Isso significa 20% a 25% a menos de nicotina quando comparado aos cigarros convencionais.
Isso quer dizer que um cigarro eletrônico precisa ter muito mais nicotina bruta em sua composição para tentar alcançar os níveis de nicotina dos cigarros convencionais. Isso acontece porque os cigarros são consumidos através da queima, além de possuir mais de 7000 substâncias, entre elas a amônia, usada para potencializar a absorção da nicotina.
Devemos lembrar que o valor de 60mg/ml é a quantidade máxima de nicotina bruta oferecida em líquidos para cigarros eletrônicos, mas grande parte dos consumidores utiliza níveis muito mais baixos como apenas 3mg/ml bruta, o que significa percentuais que podem chegar a 85% menos nicotina absorvida do que nos cigarros convencionais.
Também há contaminação do fumo passivo
O papel do “fumante passivo”, cujo termo técnico em Inglês é “secondhand e-cigarette aerosol – SHA” ou “exposição dos espectadores ao aerossol de cigarro eletrônico” em tradução livre, está sendo estudado e vários trabalhos já foram realizados.
Apesar de não existir ainda um consenso científico, não há qualquer evidência concreta de que a condição apresente riscos relevantes.
O órgão Cancer Research UK do Reino Unido declara que “Não há boas evidências de que o vapor passivo dos cigarros eletrônicos seja prejudicial. Como os vapes ainda são relativamente novos, não podemos ter certeza de que não haja efeitos a longo prazo para as pessoas que respiram o vapor de outra pessoa. Mas é improvável que isso seja prejudicial. Vaping passivo não é o mesmo que fumar passivo. Isso ocorre porque os cigarros eletrônicos não contêm tabaco.”
Um estudo recente conduzido na Europa publicado na revista científica Science Direct analisou dados de quatro países (Grécia, Itália, Espanha e Reino Unido) em 2019 comparando residências que tinham a presença de consumidores de cigarros eletrônicos com grupos de controle compostos por casas sem a presença dos produtos. Em ambos os casos não havia o consumo de cigarros convencionais.
Apesar de uma amostra relativamente pequena (29 casas com cigarros eletrônicos e 21 casas sem os produtos) a conclusão do estudo foi de que “Não houve diferenças significativas nas concentrações de nicotina e partículas de matéria no ar medidas nas residências dos usuários de cigarros eletrônicos e nas residências de controle durante uma semana.”
Contém mais de 2000 substâncias, incluindo metais pesados
Como tratamos em nosso artigo “Médicos continuam divulgando desinformação sobre os cigarros eletrônicos” essa informação é enganosa, baseada em uma pesquisa cheia de falhas metodológicas, que causa medo e incerteza em relação aos cigarros eletrônicos, sem embasamento técnico e científico adequado.
Tal informação se refere à uma pesquisa realizada em Outubro de 2021 que apresentou dados de cromatografia líquida, o primeiro do tipo até então. Esse sistema oferece uma análise extremamente sensível e complexa de todos os produtos e subprodutos de uma determinada amostra. Nela foram identificados quase 2000 produtos químicos ao analisar 4 tipos diferentes de cigarros eletrônicos, o que foi amplamente coberto pela mídia, de maneira muitas vezes sensacionalista.
O que o artigo não explica é que não é surpreendente encontrar uma grande variedade de contaminantes orgânicos neste tipo de amostra. Na verdade, nós inalamos todo o tipo de moléculas apenas por andar nas ruas de grandes cidades, ao fritar alguma coisa em nossa cozinha ou ao usar uma churrasqueira.
No entanto, a dose é o que importa.
Em todas as pesquisas já realizadas comparando os produtos químicos presentes nos cigarros convencionais e nos líquidos para cigarros eletrônicos, os resultados mostram quantidades centenas ou milhares de vezes menores nos eletrônicos, mostrando que não são 100% seguros, porém oferecem um impacto muito menor na saúde.
Além disso, como dissemos anteriormente, tal pesquisa de 2021 está recheada de falhas. Os autores fizeram tudo o que poderiam ter feito de errado: usaram material de coleta propenso à lixiviação, não explicaram como controlavam a contaminação do ambiente (amostras em branco) e usaram um protocolo de inalação completamente inadequado: testar um dispositivo de alta potência com um fluxo de ar muito baixo, onde máquinas fizeram muitas tragadas em curto espaço de tempo, condições que tornam praticamente certo o superaquecimento do dispositivo e são irreais no consumo por um ser humano. À medida que a temperatura aumenta, várias reações moleculares se tornam ativas e assim cria-se uma grande variedade de compostos.
Esta não é a primeira pesquisa que apresenta grandes falhas na metodologia, como explica nosso artigo Revisão científica de pesquisas sobre metais inalados nos cigarros eletrônicos.
Comentário nas publicações e conteúdo denunciado
Após revisão do conteúdo, o Vapor Aqui comentou na publicação alertando sobre os erros e procedeu com uma denúncia ao Instagram por informações falsas de saúde, além de protocolar uma denúncia na Ouvidoria da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Caso tenhamos resposta, atualizaremos o texto desse artigo.