A indústria tabagista não é dona dos cigarros eletrônicos

Publicado:

Tempo de leitura: 5 minutos

No debate sobre vaporizadores no Brasil, também conhecidos como cigarros eletrônicos, é constante o uso de argumentos com informações incorretas ou puramente sensacionalistas, feito por organizações de saúde contrárias à liberação do comércio dos produtos no Brasil, que de forma ideológica e desconectada da ciência, promovem uma campanha nacional anti-vaping, servindo somente para assustar o público e afastar a possibilidade de um debate coerente e científico sobre o assunto no Brasil.

Um dos principais argumentos utilizados por essas organizações está em ligar os vaporizadores à indústria tabagista.

Em resumo, a principal ideia defendida é:

Os cigarros eletrônicos são produtos da indústria tabagista, que vem perdendo mercado há muito tempo e agora quer que o comércio de cigarros eletrônicos seja liberado no Brasil, para reconquistar clientes e viciar toda uma nova geração de jovens, lucrando e aumentando o seu mercado.

Mas isso está completamente errado.

A indústria tabagista não apenas não foi a inventora dos produtos, como sequer detém a maior parte do mercado desses aparelhos, longe disso.

Foi na China que os cigarros eletrônicos foram inventados em 2003 por um engenheiro e farmacêutico Chinês chamado Hon Lik. Sua invenção foi fruto de ver seu pai doente de câncer de pulmão decorrente do tabagismo e por ele mesmo ser um fumante e não conseguir parar de fumar. Criou então um dispositivo que vaporizava um líquido contendo nicotina e o cigarro eletrônico moderno foi desenvolvido. Fundou uma empresa e passou a comercializar o produto.

Com o passar dos anos se espalharam por todo o mundo, chegando na Europa e nos EUA em 2006, enquanto no Brasil os produtos apareceram por volta de 2008. Em 2009 tornaram-se preocupação da ANVISA, que criou a RDC 46, Resolução da Diretoria Colegiada, proibindo o comércio, importação e propaganda dos produtos. Utilizando o chamado “princípio da precaução”, optou pela proibição pois alegou que não haviam estudos concretos na época para garantir a segurança no uso dos cigarros eletrônicos.

De lá pra cá muitos desenvolvimentos tecnológicos foram realizados e os produtos passaram a ser profundamente estudados. Hoje temos uma quarta geração dos dispositivos, com um mercado definido principalmente por centenas de empresas na China. A indústria tabagista só entrou nesse mercado em 2012.

Hoje as tabagistas possuem suas próprias soluções em vaporizadores e também de tabaco aquecido, uma tecnologia diferente, porém que também não possui combustão e portanto significa uma diminuição de danos similar aos vaporizadores, na casa dos 90% menos danos.

Porém mesmo após 10 anos desenvolvendo e lançando produtos, relatórios de 2019 mostram que a fatia mundial na venda de cigarros eletrônicos na mão das indústrias tabagistas é de apenas 17.2%. Mais de 80% desse mercado está na mão das empresas Chinesas que não fazem parte da indústria de cigarros.

Os produtos usados no Brasil não são da indústria tabagista

Seguindo a narrativa do lobby realizado por essas organizações de saúde, podemos pensar que os produtos consumidos no país são fabricados pelas indústrias tabagistas, mas nem mesmo isso é correto.

No Brasil, a prevalência de uso de vaporizadores é de 7.3% da população acima de 18 anos, de acordo com uma última pesquisa realizada pela Covitel. Isso resulta em mais de 11.2 milhões de adultos consumidores.

Os produtos consumidos por essas pessoas são exclusivamente fabricados por empresas Chinesas, importados da China pelo Paraguay, entrando no Brasil por meio do contrabando na fronteira, alimentando um gigantesco mercado ilegal no país.

Apesar do comércio ser proibido desde 2009 pela ANVISA, o mercado desses produtos só cresce, sendo oferecidos sem qualquer controle ou fiscalização, o que nos leva a concluir que se o país insistir em uma legislação que há mais de 13 anos se mostra ineficaz, o comércio ilegal continuará crescendo em um ambiente de proibição que só favorece o contrabando.

Ligar os cigarros eletrônicos à indústria tabagista é estratégia de lobby

Mesmo sem existir qualquer base lógica ou de realidade, serve ao lobby destas organizações de saúde criar uma suposta ligação entre cigarros eletrônicos consumidos no Brasil e a indústria tabagista, dada a fama que esta possui. É possível conferir essa estratégia em praticamente todos os eventos realizados por essas organizações, em palestras, seminários e eventos de debate, sendo repetido à exaustão.

Isso porque após os anos 50, uma série de ações foram adotadas pela indústria tabagista para minimizar a percepção de risco que o público tinha sobre os cigarros.

Cientistas e pesquisadores foram pagos, médicos foram influenciados e campanhas realizadas para dizer que cigarros não viciavam e não causavam doenças, o que obviamente sabemos hoje ser justamente o contrário. O escândalo foi finalmente exposto e a indústria pagou bilhões, principalmente nos EUA.

O chamado MSA – Master Settlement Agreement, foi um acordo entre a indústria tabagista e o Governo dos EUA realizado em 1998 para pagar um total de 206 bilhões de dólares em 25 anos, com a obrigação de continuar pagando para sempre, à partir de 2018, 9 bilhões de dólares todos os anos, devido aos problemas de saúde causados pelos cigarros.

Atualmente, são empresas que continuam lucrando com um produto que causa doenças graves, sendo a principal causa de morte evitável no mundo, ceifando a vida de 8 milhões de pessoas anualmente.

Como a percepção do público tem a tendência de ser negativa em relação à indústria tabagista, é uma estratégia interessante ligar os produtos de cigarros eletrônicos a esta indústria.

O menino que gritava “Lobo!”

A história do “Menino que gritava Lobo!” é uma tradicional fábula em que um menino brincava de gritar que um lobo estava chegando para pregar peças nos moradores de uma vila, que vinham correndo ao seu socorro, somente para encontrar o menino rindo e debochando das pessoas. Até que um dia que um lobo realmente apareceu e ninguém acreditou, então ele foi devorado. Um fenômeno similar acontece com a indústria tabagista.

Nos últimos anos o mercado de cigarros vem diminuindo gradativamente. Para se manter no mercado, a indústria tabagista precisou desenvolver novos produtos e foi natural que adotasse os cigarros eletrônicos em seu portfolio, uma vez que já foi comprovado que possuem eficácia na troca dos cigarros convencionais e possuem grande apelo aos fumantes, com o benefício de oferecer muito menos riscos à saúde, com uma diminuição de danos aproximada de 95% a 99%.

Até os mais cínicos entre nós devem pelo menos admitir que, se não fazem porque estão preocupados com seus consumidores, utilizam pelo menos de uma lógica fria e calculista, sendo preferível ter clientes vivos e saudáveis consumindo seus produtos por mais tempo do que perder clientes mais rapidamente por causa de um produto que mata metade dos que usam. De qualquer forma, o resultado obtido é o mesmo, menos danos e menos doenças graves ligadas ao tabagismo, talvez o problema seja apenas a indústria continuar lucrando, mesmo que isso signifique salvar milhões de vidas no processo.

Essa é a mesma ironia da história do “menino que gritava lobo!”, justamente quando a indústria tabagista quer oferecer um produto que significa grande redução de danos e adotar uma estratégia que poderia beneficiar a saúde de milhões de consumidores de cigarros convencionais, aponta-se para o passado e tentam descredibilizar essa ideia.

Isso é visto principalmente quando são desconsiderados dezenas de estudos científicos já realizados pela indústria tabagista, que já investiu milhões em pesquisas com excelente metodologia, apresentando dados concretos e reais, mas que por ter interesses nos resultados, são automaticamente vistos com viés. Apesar disso, como matemática, física e química não são difíceis de se confirmar, muitas revisões por pares independentes já foram realizadas e os dados se sustentam, portanto, como não se pode descartar o conteúdo, é preciso descredibilizar a fonte da informação.

É conveniente para essas organizações de saúde contrárias aos produtos de cigarros eletrônicos, fomentar a percepção de que os cigarros eletrônicos são da indústria tabagista, que sempre terá um objetivo nefasto por detrás de suas ações. Se hoje elas defendem a comercialização de produtos como cigarros eletrônicos, automaticamente isso deve ser ruim.

Alexandro Lucian
Alexandro Lucian
Jornalista e pesquisador especializado em Redução dos Danos do Tabagismo (RDT), fundador do VaPorAqui.net em 2015, projeto independente multiplataforma e maior fonte de informação sobre o assunto no Brasil.Convidado especial em eventos nacionais e internacionais, trata de temas como cigarros eletrônicos, tabaco aquecido, tabaco oral, nicotina e impacto do tabagismo na saúde.Em 2021 criou a DIRETA.org, organização não governamental, sem fins lucrativos, de formato associativo, atuando como presidente na primeira iniciativa do gênero no país.

Outros artigos

Comparando a saúde autoavaliada entre usuários exclusivos de cigarros eletrônicos e fumantes de cigarros tradicionais: uma análise da Pesquisa de Saúde da Inglaterra de...

Yusuff Adebayo Adebisi, Duaa Abdullah Bafail
"Esses achados sugerem que usuários exclusivos de cigarros eletrônicos percebem sua saúde de forma mais positiva do que fumantes de cigarros tradicionais, oferecendo insights úteis para as discussões sobre estratégias de redução de danos."

Os efeitos dos padrões de uso de cigarros eletrônicos sobre a carga de sintomas relacionados à saúde e a qualidade de vida: análise de...

Yue Cao, Xuxi Zhang, Ian M Fearon, Jiaxuan Li, Xi Chen, Yuming Xiong, Fangzhen Zheng, Jianqiang Zhang, Xinying Sun, Xiaona Liu
"Usuários exclusivos de cigarros eletrônicos (EC) apresentaram menos sintomas relacionados à saúde e melhor qualidade de vida (QoL) do que aqueles que eram fumantes exclusivos de cigarros convencionais (CC). Isso deve ser levado em consideração ao avaliar o potencial de redução de danos dos cigarros eletrônicos."

Novo estudo mostra mínima diferença na saúde de pessoas que usam cigarros eletrônicos sem histórico de tabagismo em comparação com quem nunca consumiu nicotina

Trabalho ajuda a entender os reais impactos menores dos cigarros eletrônicos quando usados isolados do consumo de cigarros tradicionais.

Projeto de Lei da Câmara dos Deputados pode criminalizar consumidores de cigarros eletrônicos no Brasil

PL Nº 2.158 quer tornar crime "transportar" e "armazenar" cigarros eletrônicos, sem distinção de comércio ou uso próprio, ameaçando milhões de consumidores brasileiros.

Mudança de Cigarros para Produtos de Tabaco Aquecido no Japão – Potencial Impacto nos Resultados de Saúde e Custos de Assistência Médica Associados

Joerg Mahlich, Isao Kamae
"Considerando as taxas de prevalência heterogêneas, uma abordagem única de controle do tabaco é ineficaz. O Japão deve priorizar medidas de custo-efetivo que promovam benefícios à saúde pública e econômicos. Incentivar os fumantes a trocar por produtos de risco reduzido, aumentar a conscientização sobre os riscos à saúde e adotar um modelo de tributação baseado no dano podem impulsionar mudanças positivas. Parcerias público-privadas podem intensificar os esforços de redução de danos. Com uma combinação de reformas tributárias, regulamentações revisadas, colaborações e pesquisas contínuas, o Japão pode criar uma abordagem mais eficaz e abrangente para o controle do tabaco."

Lojas de varejo de cigarros eletrônicos no México: um país que proíbe a venda

David Zepeta Hernández, Angelica Susana López Arellano, Erika Mayte Del Angel Salazar, Nazaria Martínez Díaz
"Os cigarros eletrônicos estão amplamente disponíveis e comercializados em diversos pontos de venda no México. O alto número de lojas, marcas de líquidos e cigarros eletrônicos indica o descumprimento das regulamentações existentes."

Newsletter

- Receba notícias em seu email

- Não compartilhamos emails com terceiros

- Cancele quando quiser

Últimas notícias

Transformação do mercado de produtos de tabaco no Japão, 2011–2023

Michael Cummings, Avery Roberson, David T Levy, Rafael Meza, Kenneth E Warner, Geoffrey T Fong, Steve Shaowei Xu, Shannon Gravely, Bibha Dhungel, Ron Borland, Richard J O'Connor, Maciej Lukasz Goniewicz e David T Sweanor
"Embora muitos fatores possam ser responsáveis ​​pela queda nas vendas de cigarros no Japão nos últimos 12 anos, o aumento nas vendas de HTPs parece ser um fator."

Prognóstico após a mudança para cigarros eletrônicos após intervenção coronária percutânea: um estudo nacional coreano

Danbee Kang, Ki Hong Choi, Hyunsoo Kim, Hyejeong Park, Jihye Heo, Taek Kyu Park, Joo Myung Lee, Juhee Cho, Jeong Hoon Yang, Joo-Yong Hahn, Seung-Hyuk Choi, Hyeon-Cheol Gwon, Young Bin Song
"Entre fumantes submetidos a intervenção coronária percutânea para doença arterial coronária, a mudança para o uso de cigarro eletrônico (particularmente a transição completa) ou parar de fumar foi associada à redução do risco de eventos cardíacos adversos maiores do que o uso contínuo de cigarro combustível."

Na última década o vaping salvou 113 mil vidas e economizou quase 1 trilhão de reais na economia e na saúde dos EUA

Relatório traduzido para o Português pela organização científica Direta.org mostra que o vaping tem um grande impacto positivo quando devidamente regulado.

Reino Unido proibirá vapes descartáveis, restringirá sabores e fará mais coisas estúpidas

O governo do Reino Unido decidiu que proibirá os vaporizadores descartáveis ​​e sugere que proibirá os sabores dos vaporizadores. Isto irá desencadear mais tabagismo, mais comércio ilícito e mais soluções alternativas.

9 fatos e mitos sobre o vaping de acordo com o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido

Menos prejudiciais do que fumar, ajudam contra o tabagismo, menos nicotina que os cigarros e outros fatos que o Brasil ignora sobre o vaping.