No Brasil, muitos grupos privados, que se apresentam como organizações de saúde, são contra a estratégia de Redução de Danos do Tabagismo (RDT) e apoiam a manutenção da proibição do comércio de cigarros eletrônicos no país, mesmo com grande consenso mundial entre especialistas e renomadas instituições, que tem declarado que esses produtos são muito menos prejudiciais do que os cigarros convencionais e ajudam as pessoas a parar de fumar, o que tem determinado as políticas de saúde pública de mais de 100 países que já regulamentaram o comércio desses dispositivos, enquanto o Brasil segue proibindo.
No momento há uma forte e estruturada campanha contra os cigarros eletrônicos, com dinheiro suficiente até para propagandas na maior rede nacional de televisão, que com frequência exagera sobre os riscos dos produtos e compartilha informações falsas, na tentativa de criar um pânico moral e impedir que a opinião pública tenha uma percepção de risco adequada, que em resumo, obviamente fazem mal à saúde, mas tem um impacto muito menor que os cigarros convencionais e são atualmente a ferramenta mais eficaz no combate ao tabagismo.
Mas frente a tantos interesses, às vezes é fácil se esquecer que por detrás desse cenário, existem histórias de vida de pessoas reais, que enfrentam dificuldades e sofrem as consequências dessas ações.
A história de SKIP
Kim “Skip” Murray tem 65 anos, mora em Minnesota, nos EUA e compartilha sua vida como um livro aberto, contando que enfrenta alguns desafios por ser portadora de neurodiversidades, como TDAH e autismo, além de conviver com ansiedade, depressão e stress pós-traumático
Em uma entrevista para o site EcigClick, “Skip”, como gosta de ser chamada, explica que fumou desde os 10 anos de idade até seus 56 anos, quando conheceu os cigarros eletrônicos em 2014 através de seu filho, que era proprietário de uma loja dos produtos. Ele não gostava de ver a mãe fugindo para os fundos da loja para fumar, então lhe presenteou com um aparelho.
Ela declara que não tinha nenhum interesse em parar de fumar na época, pois já havia tentado muitas vezes e sempre sem sucesso, mas aceitou o presente e passou a usar o dispositivo, até que percebeu em 1º de Março de 2015 que tinha simplesmente parado sem querer, graças ao cigarro eletrônico.
Mas apesar das dificuldades impostas por sua neurodiversidade, isso não foi suficiente para impedir que ela se tornasse uma figura importante no meio acadêmico e científico da Redução dos Danos do Tabagismo, pesquisadora do Centro do Consumidor da Taxpayers Protection Alliance, colaboradora da revista Filter e reconhecida por ser uma voz muito relevante para pessoas com necessidades específicas, trabalhando há mais de 10 anos em uma casa coletiva que presta serviços a pessoas adultas com deficiência.
Um dos seus pontos focais dos últimos tempos tem sido falar sobre estigma, mais precisamente aquele enfrentado pelos “fumantes”, a quem ela chama de “pessoas que fumam”. Sua justificativa para a troca do termo é baseada na empatia e na consideração ao próximo: “Não nos referimos mais às pessoas que usam drogas como viciados, drogados, viciados em crack, etc., porque isso é considerado uma linguagem estigmatizante. É considerado mais compassivo usar a linguagem que prioriza as pessoas. E sinto que as pessoas que fumam merecem o mesmo respeito e compaixão que qualquer outra pessoa que usa uma substância, ou tem uma doença/deficiência, ou um comportamento que a sociedade vê de forma negativa.” declara Skip em entrevista ao site EcigClick.
E o estigma social não tem sido imposto somente para pessoas que fumam, mas também para aqueles que usam cigarros eletrônicos, inclusive no Brasil, já que há um claro fenômeno ocorrendo na sociedade, em que pessoas que usam cigarros eletrônicos, apesar de não estarem cometendo nenhum ato ilícito ou reprovável de acordo com nossa legislação, muitas vezes demonstram hesitação ou até vergonha em admitir que fazem uso dos produtos.
Skip sempre fez questão de tornar sua vida, e suas dificuldades, públicas, fazendo de suas experiências exemplos para que outras pessoas possam saber que não estão sozinhas. Recentemente, desabafou em um grupo de colegas acadêmicos e especialistas do qual participo e foi essa sua mensagem que inspirou este artigo, a qual pedi autorização para publicar integralmente e fui prontamente atendido de forma gentil e aberta.
Kim “Skip” Murray relata mais uma perda em sua família e sentimos em cada parágrafo não apenas sua dor, mas principalmente uma indignação por algo que poderia ter sido facilmente evitado, caso a Redução dos Danos do Tabagismo fosse mais aceita e menos combatida no mundo, por organizações que ignoram a ciência e fazem uso da desinformação para defender seus próprios interesses. Este é o texto que ela compartilhou, na íntegra, traduzido por mim para o Português:
“Quando meu telefone tocou às 3h52 de hoje, eu sabia o que estava prestes a ouvir antes de atender. Estou esperando por essa ligação há algumas semanas. Perdi outro membro da família devido ao câncer de pulmão. Ele tinha 53 anos. Ele fumou desde os 15 anos até ficar fraco demais para fumar outro cigarro. Ele tentou parar de fumar várias vezes, mas nunca conseguiu.
Então, ele desistiu de tentar. Tentei encorajá-lo a continuar tentando. Ele não consideraria os cigarros eletrônicos. Ele acreditava que era pior do que fumar. Não importa quanta ciência eu tentei lhe fornecer, ele acreditou nos grupos de saúde (que não apoiam a redução dos danos do tabaco) e nas notícias.
Tragicamente, esta não é a primeira vez que experimento isso. A mesma história aconteceu com o melhor amigo do meu marido, Jim, que também morreu por causas relacionadas ao fumo e se recusou a tentar o vape. A família do meu primo mora longe, em outro estado, então não pude estar lá para ajudá-los e apoiá-los. Seus amigos organizaram um evento beneficente há alguns meses para ajudar a família e ficaram dolorosamente conscientes de quanto estigma envolve o tabagismo e o câncer de pulmão.
O empregador do meu primo não doaria para o benefício. A razão deles? Porque ele fumou, ele fez isso consigo mesmo, e é isso que ele ganha. Sem empatia. Compaixão zero por sua esposa e filhos, incluindo um filho adulto que mora com eles devido a deficiências que a impedem de viver de forma independente. Eles até sofreram alguns tratamentos, atitudes e palavras indelicadas dos profissionais de saúde porque ele fumou e acabou com câncer de pulmão.
Na primavera passada, pouco depois de ele receber o diagnóstico terminal, a esposa do meu primo começou a chorar no grupo de mulheres da igreja. Quando ela contou o que estava acontecendo, a primeira pessoa que respondeu disse “ele deve ser fumante”. Onde estava a compaixão por alguém que compartilhava notícias devastadoras? Uma oferta de ajuda? Oferecendo suporte? Foi então que eles decidiram manter a viagem privada. E nada era público até o benefício, que tinha cerca de metade do apoio que o benefício de outro familiar recebia para alguém diagnosticado com um tipo diferente de câncer (não relacionado ao tabagismo).
É por isso que escrevi sobre câncer de pulmão e estigma neste verão. Porque eu sabia que pessoas boas sofriam em silêncio para não terem que lidar com julgamentos insensíveis dos outros. A desinformação que impede as pessoas que não conseguem parar de fumar de tentar uma alternativa mais segura é a razão pela qual não sou fã de algumas organizações de saúde. E por que estou tão zangada porque a Associação Americana do Pulmão deseja que o Centro de Produtos para Tabaco do FDA nos Estados Unidos não conte ao público a verdade sobre o contínuo risco dos novos produtos de nicotina.
Porque já experimentei muitas vezes a dor de perder alguém quando ele não conseguiu parar de fumar e não mudou para uma alternativa mais segura. A desinformação está fazendo com que as pessoas morram muito antes do que deveriam!!!!
Então, vocês são os primeiros a quem mencionei isso. Por que vocês? Porque vocês tem o poder de ajudar a acabar com o estigma a que as pessoas que fumam estão sujeitas. E o estigma com que as pessoas com câncer de pulmão são bombardeadas. Nem importa se uma pessoa com câncer de pulmão nunca fumou. Na mente da sociedade, os dois estão interligados e igualmente estigmatizados.
O estigma não terminará em um dia ou mesmo em um ano, mas o esforço para acabar com ele tem que começar em algum lugar. Acredito que o primeiro passo é que precisamos que outros vejam as PESSOAS e não o rótulo. Já há algum tempo, venho pedindo às pessoas que parem de usar “fumantes” e, em vez disso, usem “pessoas que fumam”. É um passo para mostrar a um grupo de pessoas que precisam de apoio que nos preocupamos com elas e as apoiamos. Os hábitos são difíceis de quebrar – seja fumar ou as palavras que usamos. Mas isto pode ser feito. E todos vocês podem começar a afastar o mundo da estigmatização das pessoas que fumam, eliminando uma palavra do seu vocabulário. Uma palavra!!!!!